Liberdade Reflexiva

15/05/2009

Liberdade reflexiva é uma expressão que encontrei nos escritos de Maturana. Denota a possibilidade de compreender o mundo de uma maneira diferente da versão que nos apresentam.

Case-based medicine

16/07/2020

Case-based medicine

Gil Patrus Pena

In the last two decades, the decision process in medicine has undergone a major change, with the rise of evidence-based medicine (EBM). “EBM is the conscious, explicit and judicious use of current best evidence in making decisions about the care of individual patients”1:2. Medicine is not evidence-based, but case-based: case-based medicine is the care of individual patients, going beyond decision-making processes using whatever available (both internal and external) evidence.

Case-based medicine emphasizes the importance of personal medical skills in establishing a doctor-patient relationship, obtaining data about the patient and his or her illness, and ultimately deciding which knowledge (external evidence included) fits to the case, in relation to the diagnosis, prognosis and therapeutics. Beyond decision, medicine requires action. Doctors aim at understanding and mastering a disease, but must sometimes act pragmatically as required by the case.

EBM alone is not enough. Evidence is neither a starting nor a reaching point. A medical case starts and ends as a medical case. EBM is only another name for clinical epidemiology, a basic science as biochemistry or pharmacology. Biochemists would probably talk about molecular-based medicine, pharmacologists of drug-based medicine.

Different lines of knowledge are not enough in isolation, and are put together in the medical case. Medicine is now a multiple-faced effort: insurers, administrators, technicians, researchers, pharmacists, medical equipment industrials, pharmaceutical laboratories, sellers, retailers, financiers, philosophers, thinkers, attorneys, reviewers, publishers, and readers, they all have become partners of medical business. As many of these participants have no medical clinical skills, it is not surprising the excessive weight that has been put on EBM.

EBM is made of non-materialized inductive propositions. Evidence is to be best generated within controlled population surveys, but usually arises from extrapolation of sample surveys. Rules for extrapolation are not entirely evidence-based: investigator’s authority, expertise, experience, financial resources and interests imponderably power the evidence and its likelihood of impact. Evidence is generally produced in the direction of establishing nearly infallible diagnostic strategies and almost always-effective therapeutic approaches. The inevitable ultimate failure becomes evident in case-based medicine. Not-so-rare complications or side effects may run undetected (or worse, unreported2) in clinical trials, but become real in case practice.

Doctors and patients make decisions on the expectation that their case will conform either to the rule or the exception of the evidence, either reassuring the expectation of an uneventful medical procedure or catching on to an ultimate hope of a highly unlikely favorable outcome. Success or failure may sometimes depend on undetected or unknown aspects of both the case and the scientific knowledge, as will be clear only in a case-based retrospective analysis. The case is an epistemological obstacle to scientific assumptions. The knowledge arising from case analysis conflicts even with best evidences. “Empirical thought becomes clear in retrospect when the set of arguments is established”3:17.

References:

1-Sackett DL, Richardson WS, Rosenberg W, Haynes RB. Evidence-based medicine. How to practice and teach EBM. New York: Churchil Livingstone, 1997.

2-Mukherjee D, Nissen SE, Topol EJ. Risk of cardiovascular events associated with selective COX-2 inhibitors. JAMA. 2001;286(8):954-959. doi:10.1001/jama.286.8.954

3-Bachelard G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

Eu, professor

10/07/2020

Foi em 3/12/2019, estava a caminho da Faculdade, para dar aula. No rádio, noticiavam mais um desempenho abaixo do mediano na avaliação do Pisa, o então ministro da educação, sr. Weintraub, creditou a nota ruim a governos anteriores, salientando que a lápide da educação estava à porta do ministério, no mural construído em referência a Paulo Freire, Educador.

[link para a noticia]

Cheguei na Faculdade, o primeiro que fiz foi encontrar com o Paulo Freire, na biblioteca, achei seu livro Pedagogia da Autonomia. Do celular, fiz a foto o “livrinho” quase insignificante diante do conteúdo que ensino, dividi com os professores:

“Um pequeno livrinho, quase insignificante perto do tamanho conteúdo que ensinamos, essencial para que sejamos educadores criticos e desenvolvamos esta criticidade com os alunos. É um bom caminho para evitar que o charlatanismo e a pseudociência ganhem ainda mais terreno. ” (descrição da imagem: O livro Pedagogia da Autonomia, colocado sobre o livro de patologia do Robbins; os dois exemplares mostram a etiqueta da biblioteca).

Inseri a figura também na aula. Conversei um pouco com os alunos sobre o Paulo Freire. A crítica necessária do conhecimento, o conhecimento colocado na prática, objeto de reflexão de professores e alunos. É o que deve nos orientar na medicina. A este tempo, nem estávamos na pandemia, momento em que teríamos de afinar o senso crítico, colocar o conhecimento a nosso serviço, sabendo do próprio limite do conhecimento, e nesse limite, sempre contrapor a prática à teoria. Contei-lhes a história do próprio Paulo Freire, narrada no livro, a avaliação de seu professor ao seu trabalho, o olhar, a confiança. Disse, que na função de professor, quisera ter a possibilidade de crescer-lhes a confiança de enfrentar o mundo e transformá-lo.

Não chega a ser estranho que se façam muitas restrições ao pensamento de Paulo Freire, já ouvi, mesmo entre pessoas que considero, que a proposta pedagógica de Paulo Freire, consistiria em algo como nada ensinar, a não ser as relações de opressão, a necessidade de tomar posição em meio a luta de classes, tornando a educação o espaço para a ideologização de esquerda. Eu arrisco a dizer que aqueles que mais propagam as ideias de Paulo Freire, não chegaram a lê-lo, ou se o leram, não o fizeram na profundidade requerida, deixando de fazer, como sugere o próprio escritor, a leitura crítica, em que o leitor questiona e dialoga com o autor.

Em uma destas conversas, quando me foi dito que a pedagogia de Paulo Freire não prezava o conteúdo, disse que tratava-se de uma elaboração equivocada, que não tinha qualquer suporte nas próprias publicações do autor, para quem “O ato cognoscitivo dá-se na relação dialógica indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível” (Freire, 2006, p.79). Na ocasião, mencionei um ensaio publicado em 2010, em que relatei um caso de abetalipoproteinemia, como prática gnosiológica (Pena, 2010). Neste ensaio, o “conteúdo do caso”, o objeto do estudo, é ponto de partida para o exame da realidade do mundo:

“Mais do que narrar o caso e comentar seu conteúdo, como usualmente se faz nos relatos de caso, o caso, como objeto de estudo, pode ser empregado como matéria para reflexão sobre a prática. O caso é objeto mediatizador da reflexão que se faz sobre a prática, possibilitando um desvelamento da realidade, na qual se insere o exercício da medicina (Pena, 2010)”.

Não há nisso, qualquer desprezo ao conteúdo, ao contrário. Vai-se além do conteúdo. Não sei como pode ser mais transparente que isso, mas para muitos é nublado.

Mesmo para mim, muitas coisas são nubladas, não vejo tudo claro, muito ignoro, talvez mais do que saiba, e não me envergonho de saber menos que meus educandos, como eles, busco desvendar o que não sei. Colocar-nos a resolver os enigmas do mundo, nós mesmos parte do enigma, o ovo e a galinha, estamos sempre a bicar a casca, pelo lado de dentro, romper este limite, do lado de fora, não estamos sozinhos, tanto a explorar, conhecer.

( não é fácil escrever. as vezes é torrente, brotam palavras de meu teclado, fazem se textos que lidos podem me fazer compreender, outras vezes estamos lago, calma de superfície, dizer de águas paradas, profundas, clarice me disse um dia, turvo, escrever, depositar ao fundo, clarear, difícil por que é complexo, quero desistir. já tantos textos inacabados, tanta inacabação, onde não vou chegar com tudo isso, ou nada disso. disse. que me diria clarice, ora direis, algo do que não sei. acho texto seu suas palágrimas correm devagar. salgado senso nos meus lábios. a dor. límpida. profunda. a luta inútil, ainda me diz. estranho que fale do homem no texto. esse que sou. fraco. triste fracasso)

Admito. Não renuncio à liberdade, à de pensamento. Essa a minha luta, sendo comigo mesmo, nunca estará perdida, nem será inútil. Talvez solitária. Talvez não. Da pequena possibilidade, surge a esperança. Caminho. Mesmo os não traçados.

Na reunião em março, para o início do semestre, na faculdade, sentou-se a meu lado a professora de clínica médica, me disse lia o “livrinho”, o da foto que havia compartilhado. A meu lado: foi para mim o mais significativo.

A faculdade, devemos dizer é uma empresa, destas do mundo capitalista, a educação é um negócio. Não sei o tanto que se possa conciliar, o mundo dos negócios, o da educação. Existimos entre os dois, ou melhor nos dois, melhor não misturar, o mundo sistêmico dos negócios que me remunera, o mundo vivido da educação eu meus alunos. Ações de natureza distinta, mas uma prioritária.

O mais curioso, nisto tudo, que me dá certa ojeriza, é que o mundo sistêmico, este que trata do comércio da educação, apropria-se dos nossos ideais, transformando-os em produtos de marketing, vendendo como ações de entendimento, ações estratégicas. Disfarçam ações estratégicas como ações dialógicas:

“Prezado Gil, boa tarde!
Estou agendando esta reunião para um dialogo juntamente com o gestão de pessoas. Favor confirmar o recebimento deste e-mail e sua disponibilidade.
Atenciosamente” (mensagem da coordenação, em 08/07/2020)

O “dialogo” era para me dar o aviso de que estava dispensado das minhas funções de professor.

Referências

Freire P. Pedagogia do oprimido. 44 ed. São Paulo: Paz e Terra; 2006

Pena, GPM. O relato de caso como situação gnosiológica: reflexões sobre a prática diagnóstica em patologia a partir de um caso de abetalipoproteinemia. Revista Brasileira de Educação Médica34(4), 622-626, 2010. https://doi.org/10.1590/S0100-55022010000400019

A ‘horripilinda’ fascinação da patologia

02/11/2019

No inglês, a expressão “The ‘awe-full’ fascination of pathology” parece fazer mais sentido. É o título do capítulo que escrevi juntamente com Quentin Einhbaum, Leonard White e Gwinyai Masukume, no recém-lançado livro “Routlegde Handbook of Medical Humanities”, editado por Alan Bleakley. Meu encontro com Alan ocorreu em razão de outro livro seu “Thinking with Metaphors in Medicine: The State of the Art (Routledge Advances in the Medical Humanities)”; foi o José de Souza quem me deu um exemplar deste livro. Fiquei entusiasmado com o livro e escrevi-lhe um email, cumprimentando-o pela publicação. Já na resposta que me deu, fez-me o convite para integrar o grupo que escreveria o capítulo que tinha em mente, sobre a ‘horripi-linda’ fascinação da Patologia. Quentin e Gwinyai aceitaram-me como co-autor e colocamo-nos a escrever em conjunto que fascinação é essa que nos traz a Patologia. Leonard entrou no grupo mais tarde, a convite de Quentin, também trazendo importantes contribuições para o tema.

Relendo o email que enviei ao Alan, a respeito do livro sobre o estado da arte das metáforas na medicina, descortino um certo grau de petulância que me é particular, qual seja, o de expandir o que não está escrito no livro, instando-o a ampliar e aprofundar a análise que faz em seu livro sobre o uso das metáforas na medicina.

Metáforas estão sempre em fluxo e seu estado é caracterizado por seu fluxo, sendo portanto um anti-estado. Sendo um fluxo contínuo, uma vez que passei pelo seu livro, encontrei a necessidade de ir além, para ver como abordaria muitos domínios interessantes, como o da imunologia e suas metáforas cognitivas “reconhecimento”, “educação” dos linfócitos no timo. Ou a metáfora da informação – o DNA carrega a “informação” genética – sendo considerado como o centro de comando da vida e de tudo (?) “no DNA da medicina…”. Ou ainda a de um transmissor teletransportando a “informação” de um ponto a outro. Receptor e ligante são como “chave e fechadura”.

Pareceu-me ainda interessante a discussão feita no livro do corpo como máquina, e agradou-me a citação à máquina desejante de Deleuze e Guattari, como a anti-metáfora. Habita-me uma preocupação epistemológica com o uso da metáfora da máquina para o sistema vivo, particularmente por esta metáfora interferir com a compreensão do sistema vivo como um sistema. Estas preocupações são temas abordados com grande propriedade por Canguilhem e também por Maturana.

Espichando ainda mais esse fio, ou indo pela corrente que fluxo contínuo produz, poder-se-ia estender a discussão para os neurônios-espelho, e neste aspecto, certamente transitaria pela narrativa fantástica de Borges, no seu livro dos seres imaginários, onde aborda os animais dos espelhos. Durante a escritura do capítulo, tivemos uma boa discussão sobre neurônios espelho, mas não tivemos como conciliar o embate de significados entre o domínio metafórico e o domínio da neurociência. Uma das lições do livro de Alan Bleakey sobre metáforas é a de que as culturas e práticas da medicina mudam ao surgirem novas metáforas, e as metáforas mudam, ao emergirem novas culturas e práticas da medicina. A tentativa de avançar uma medicina humanística impõe-nos então a construção de novas práticas e culturas, ao mesmo tempo em que se reconstrói o imaginário metafórico em torno da ciência e da prática médica.

Escrever o capítulo foi uma grande experiência.

Já na resposta que dei ao Alan, especulava como poderia abordar tema tão intrigante, já apontando como possível abordagem trazer uma discussão de Fleck, transitando ao passado, nos tempos iniciais da patologia, imaginando como os pioneiros da patologia, ao deparar com as primeiras imagens patológicas, ainda antes da microtomia e da coloração, maravilharam-se com a multitude de achados que estavam por ser explicados. Na medida então que, gradualmente, as imagens microscópicas foram compreendidas, o encantamento assentou-se sobre o conhecimento. Uma vez que conhecemos, pudemos finalmente ver. O que então é a prática da patologia, esse olhar/ver o processo patológico? Tratando-se de um livro sobre humanidades médicas, a primeira questão a abordar é discutir a patologia (e a medicina) como uma ciência humana. Na introdução, aproveitei de um texto já escrito (https://liberdadereflexiva.wordpress.com/2012/02/10/magico-naquilo-que-mexo/). Transformou-se em poema, pela intervenção de Leonard White.

A horripilinda fascinação da patologia

Pedaços de seres humanos sobre a bancada de macroscopia
O que você lida é com a mágica
De lidar com a pessoa
Ossos, tecidos moles, vísceras, sobre a bancada
Examine, corte, amostre, processe, mergulhe, embeba-os
Parafina, bloco, vela, cera. Micrótomo.
Mícron é a medida do que você vê.
Organelas, detalhes, estruturas dentro das estruturas, microscosmos.

Lindo!

As pessoas chegam até você em seus tecidos. Horrível!
Observe, interprete. Formule configurações diagnósticas.
Labirinto da vida, vislumbre portas.
Esperança sempre a de desviar da última. Lei da natureza
Espelhe as vidas que você cuida.
Nos fragmentos que analisa, desenhe mapas, trace caminhos
Diagnóstico, não determinação
Decifre, não designe
Nenhum julgamento, nenhuma condenação.
Lei da natureza, sempre ter esperança, possibilidade do inesperado
Abrir portas, enquanto não feche a última
O impossível, o milagre, trancafiado no improvável. Mágica

Lei da natureza, ir-se pela última porta, ir, deixar
Ninguém imune ou isento
Humanos, todos iguais, morremos.

Sempre estivemos perto da morte. No vivo, que nos vem por seu tecido, no morto, que examinamos nas salas de necropsia. Em um ou outro ambiente, indagamos a origem da doença e reconstruímos eventos desde a sua instalação à morte. Na investigação deste processo e de seu curso, elaboramos preparações histológicas, sobre elas aplicamos corantes, reagentes, imagens multicoloridas surgem aos nossos olhos, pelas lentes do microscópio, há nisto tudo um senso estético, produzem-se imagens macro- e microscópicas que expomos orgulhosos em reuniões, livros e apresentações. Mais e mais sabemos de uma doença ou de seu caso, mais e mais conseguimos perceber nos casos e nas doenças que examinamos. Formulamos perguntas e nas lâminas buscamos e encontramos respostas. O aprendizado da percepção está intimamente ligado à apreciação de casos. A dedicação do patologista à preparação do caso, à seleção das imagens e sua contextualização, na revelação da verdade ali escondida, e que conseguimos descortinar. Ao maravilharem-se com a descoberta, não é possível esconder o assombro, é realmente um caso lindo!

Pode ser assim? O paciente sofre com sua doença e patologistas deleitam-se com o caso? A doença com que sofre o paciente, não é a doença com que lida o patologista. É necessário fazer o contraste entre a doença, como experiência pessoal da pessoa doente, e a doença, como objeto de estudo do patologista. Em certo sentido, o patologista ama o que faz; ama a doença que estuda. E, como se pode supor, pelo ensaio de Bussolati (2006), atrás do cérebro do patologista, que com tanto afinco investiga a doença, encontra-se um coração dedicado.

Este contraste entre o belo e o horrível está também registrado nas inúmeras analogias que nós patologistas usamos para descrever os achados: deslumbrar o belo na doença, como a noite estrelada em um caso de linfoma de Burkitt. Outras vezes, associamos a doença com ações humanas violentas, seres humanos causando sofrimento uns aos outros, como é o caso das lesões em bala de canhão, múltiplas metástases destruindo o pulmão.

Repetidas vezes, ligamos os achados da doença com a comida e a bebida. E apesar de toda a tecnologia disponível atualmente, continuamos a criar novas analogias derivadas da ‘primitiva’ atividade de comer e beber.

Podemos traçar a fascinante atividade do patologista ao estudo do seu cérebro? Perguntando circularmente, pode a sua atividade cerebral nos explicar o fascínio do estudo patológico? Confesso que me confundo nos domínios de descrição e dada a minha própria incapacidade de oferecer uma explicação, adentramos no capítulo em uma interessante discussão neurocognitiva.

Sou um eterno aprendiz no tema, cerco-me de incertezas. Tenho grande dificuldade de tratar com domínio estas questões, embora com o apoio da leitura de textos seja capaz de compreender as discussões. Não tinha consciência disso, até que um dia tratava deste assunto com meus alunos. Referi a dificuldade que tinha em explicar as ideias de Maturana, no que se refere à neurobiologia e à evolução, embora fosse capaz de compreendê-las, enquanto as lesse. Então explicaram-me que era o que acontecia com eles, eram capazes de compreender os processos patológicos que ensinava, enquanto liam ou escutavam minhas explicações, mas que, sozinhos, tinham dificuldade em desenvolver todo o raciocínio. Ensinaram-me que tanto eu, como eles, estamos trafegando na zona de desenvolvimento proximal.

De volta ao tema da horripilinda fascinação da patologia, a pergunta que fazemos é como o patologista, no seu domínio de emoções e pensamento, aproxima-se da doença e da pessoa doente, estabelecendo com a pessoa uma relação mediada pela doença. Um dos caminhos possíveis foi abordar o tema pela metacognição, envolvendo reflexão, empatia, percepção e atenção. O desafio para o patologista é estabelecer uma relação empática com o paciente, na medida em que o paciente em pessoa não está presente ao encontro de ambos. Alcançar esta empatia exige reflexão do patologista, ao examinar uma lâmina de histologia inanimada, pois este é seu encontro com o paciente. O encontro com paciente durante a sua ausência é uma aproximação de dualidades opostas. Outra dualidade é o fascínio que nos proporciona o belo e a atração que sentimos por situações violentas e destrutivas. São os seres humanos a espécie capaz dos maiores exemplos de empatia e de destruição. A atividade do patologista trafega entre os dois extremos, entre a beleza sublime – visual e cognitiva – dos diagnósticos e da doença, em seus casos extraordinários, em fascinantes preparações, e o horror de doenças ainda incuráveis, que nos colocam frente a frente com a morte inevitável.

Em todos estes aspectos, a patologia destaca-se como uma ciência fascinante. Nos cursos de medicina, a pressão pelo aprendizado do conteúdo médico-científico, colocam alunos em aceleração para dar conta de seu aprendizado técnico, às vezes com prejuízo da construção da reflexão e da empatia. Na tentativa de desenvolver estas habilidades, em algumas escolas, abrem-se espaços no currículo para disciplinas como humanística ou humanidades, desenhando-se uma dualidade curricular, o conflito entre o currículo rápido, denso, das ciências duras e o divagar – devagar, das ciências humanas. A Patologia, como uma ciência humana, que lida com o humano do paciente, nele vendo o belo de sua horrível doença, tem também esta importante contribuição curricular a oferecer. Talvez por isso, o nosso capítulo abra a Parte IV: As humanidades médicas na educação médica, do livro de Alan Bleakley. Na parte final do capítulo, Leonard White escreve e ilustra a sua experiência de educador na Duke University, proporcionando encontros criativos com estudantes, que são convidados a observar peças macroscópicas da neuropatologia e recriar a história e o impacto de lesões sobre a vida do indivíduo, na medida em que recriam, de forma abstrata ou não, os achados macroscópicos de forma artística.

Como o próprio Alan Bleakley coloca em sua introdução do livro, a discussão feita oferece uma demonstração de como – em termos da teoria da atividade – o objeto da patologia (o tecido do paciente) é “realizado” e re-materializado. O paradoxo da horripilindeza é que a mais ‘objetiva’ das especialidades médicas – a patologia – é uma arte. As humanidades médicas podem mesmo estar à vontade dentro da casa da histopatologia.

Currículo árvore, currículo rizoma.

09/06/2019

A primeira vez que vi, foi na aula de Patologia Geral, o Professor Roberto Alvarenga gostava mesmo da figura (atribuída a Dr. George Th. Diamandopoulos, Harvard Medical School, Boston, MA). A Árvore da Medicina: o tronco é a sua disciplina, a Patologia Geral, que deriva de todas as ciências básicas (Anatomia, Imunologia, Genética, Embriologia, etc) e divide nos muitos ramos da Patologia Especial, cada um destes dando suporte a um campo especializado da medicina (Dermatologia, Cirurgia, Medicina Interna, Ginecologia, Radiologia, etc), que no seu conjunto, formam a copa da árvore.

Sem título

A proposição desta configuração curricular é mesmo atrativa, tanto que configurou o ensino médico em muitas escolas, que organizavam o currículo em dois estágios, o ciclo básico (raízes) e o ciclo profissional (copa da árvore). A passagem do básico ao profissional – o tronco e galhos – estava sustentada nas disciplinas de Patologia Geral e de Patologia Especial, capazes de interpor o conhecimento técnico das disciplinas básicas e o conhecimento das especialidades médicas.

Esta organização curricular faz sentido também desde uma perspectiva epistemológica. O conhecimento médico moderno resulta da contribuição de numerosas pessoas que foram construindo as bases onde puderam sustentar-se as novas aquisições científicas, que alargaram e aprofundaram a compreensão que temos das doenças, com conquistas significativas nas áreas de prevenção, diagnóstico e tratamento.

Nesta linha de raciocínio, pudemos ver mais longe, estando sobre ombros de gigantes.  Na historia da ciência, pessoas individuais têm sido freqüentemente consideradas fundadores de disciplinas inteiras, como Darwin, para a biologia evolutiva, ou Virchow, para patologia celular. Ao contar a história destes personagens, é possível descrever a emergência destas disciplinas ao longo do tempo.

Andreas Vesalius (Bruxelas, 31 de dezembro de 1514 — Zákinthos, 1564) é considerado o pai da Anatomia moderna. Foi o autor da publicação De Humani Corporis Fabrica, um atlas de anatomia publicado em 1543.

William Harvey (Folkestone, 1 de abril de 1578 — Roehampton, 3 de junho de 1657) é considerado o pai da Fisiologia. Publicou em 1628 o livro Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus descrevendo o movimento do coração e a circulação sanguínea. Em certa perspectiva, Harvey colocou em movimento a anatomia, estudando o organismo vivo, em funcionamento.

Giovanni Battista Morgagni (25 February 1682 – 6 December 1771) é tido como o pai da Anatomia Patológica. Em sua monumental publicação, De sedibus et causis morborum per anatomen indagatis,  de 1761, composta de cinco volumes, lança o princípio fundamental da localização da doença no corpo, sediada em órgãos e tecidos específicos.

Rudolf Ludwig Karl Virchow (Świdwin, 13 de outubro de 1821 — Berlim, 5 de setembro de 1902) é, entre outras paternidades, o pai da Patologia. Toda a base da Patologia Moderna está descrita na sua obra Die Cellularpathologie in ihrer Begründung auf physiologische und pathologische Gewebelehre, publicada em 1858.

William Osler (July 12, 1849 – December 29, 1919) personifica a fundação da clínica médica moderna. Seu livro mais importante, ‘The Principles and Practice of Medicine’ teve a sua primeira edição publicada em 1892. Várias outras edições foram publicadas ao longo do século passado.

Sobre ombros de gigantes. A evolução do conhecimento médico, ao longo destes cinco séculos, pode ser contada por cada um destes grandes fundadores de ramos da ciência médica que, se viram mais longe, foi por estarem sobre ombro de gigantes. A frase “se vi mais longe, foi por estar sobre ombro de gigantes” é atribuída a Isaac Newton e remete à metáfora produzida a partir da referência mitológica do gigante cego Órion, carregando seu servo Cedalion nos ombros, para agir como seus olhos. As bases do conhecimento médico foram erguidas passo a passo, passando pela anatomia (Vesalius), fisiologia (Harvey), patologia (macroscópica com Morgagni e microscópica com Virchow), possibilitando o surgimento da medicina moderna, personificada por Osler. O currículo médico tradicional se organiza da mesma forma que a construção histórica deste conhecimento. A prática médica, contudo, é feita no caminho inverso, partimos do conhecimento clínico e orientamos a toda a propedêutica e a terapêutica com base em conhecimentos da patologia, da fisiologia, da bioquímica, da farmacologia, da anatomia, etc.

Se ao longo de cinco séculos foram lançadas as bases que deram origem e estrutura à medicina, como ciência, arte e técnica, a partir da segunda metade do século XX, emergiram novas técnicas que possibilitaram desvendar, a nível molecular, detalhes da patologia e da fisiologia, que de certo modo revolucionaram o entendimento de muitas doenças e permitiram o desenvolvimento de novas abordagens propedêuticas e terapêuticas. Em maior ou menor intensidade, disciplinas ganharam importância no currículo, como a bioquímica, a imunologia, a biologia molecular e a genética.  Se antes tinham ares de disciplinas básicas, cada vez trazem mais técnicas e conhecimentos que estão junto ao leito, e o médico clínico aproxima-se de técnicas de biologia molecular e outras. Tal como Osler que, ao colocar-se perguntas sobre as manifestações do seu doente, buscava correlações nas sessões anátomo-clínicas ou clínico-patológicas.

Além da dispersão do conhecimento em numerosas disciplinas e da velocidade da produção de novos conhecimentos, o campo do conhecimento médico se expandiu. Se imaginarmos a árvore, veremos que cresceu, encorpou, ramificou e aprofundou raízes, seus ramos e galhos cada vez mais divididos. Uma nova metáfora é necessária.

Aí chegamos ao rizoma. É o cajueiro: galhos da árvore crescem para os lados, curvam-se em direção ao solo; no contato com o solo, criam raízes, territorializam-se, de novo cresce o galho, nutridos por novas raízes, como se fossem troncos de uma outra árvore. Repete-se esse processo. Novas raízes, novos troncos.

Impossível não aludir ao conceito de rizoma na filosofia de Deleuze e Guattari.

O rizoma não tem começo, não tem fim. O conhecimento é inesgotável. O rizoma não comporta hierarquia, subordinações. O rizoma não comporta a classificação estática, a taxonomia, permite o que não cabe, a categoria “outros”, “não classificável”, ‘incerta sedis”. O rizoma espelha a epistemologia de Fleck, suas conexões passivas, ativas, interligadas, dinâmicas. Os nodos conectam linhas, novos pontos são produzidos e uma vez postos, reconfiguram a rede de linhas. O que chamamos de verdade ou realidade é uma rede em contínua flutuação.

O rizoma é conectado, heterogêneo. Um ponto vai ao outro, podendo o outro ir a um ponto, diferentemente da árvore, onde pontos são fixos e requerem uma ordem. O rizoma é simultâneo, distinto da taxonomia, a de Bloom, por exemplo, conhecer, compreender, analisar, sintetizar, avaliar, processos podem se dar sem ordem, a semântica do pensamento não comporta categorização de processos, simultâneos e sucessivos, transitamos, por pensamento, lugares e tempos.

O rizoma é não-paradigmático. Comunidades e estilos de pensamento coexistem, são bulbos ou tubérculos, conjunturas de momento na estrutura do rizoma, conexões. Rede que está em contínua reorganização.

Não tendo começo, nem fim, a entrada no currículo, dá-se em qualquer ponto. De um ponto qualquer, buscam-se conexões vizinhas, vai-se a outros pontos. Parte-se de um problema, de uma prática, de uma leitura ou teoria. A odisseia do conhecimento é a própria exploração do desconhecido. Implica descobrir, revelar. Contrapor descobertas e revelações à própria realidade, ou o que dela se espera.

O conhecimento de uma disciplina não se encerra nela mesma. Entretanto, não funda nem é fundada em outras disciplinas. Fortalece-se, na conexão com outras disciplinas, se preserva seu estilo de pensamento. Desaparece, se nesta conexão, absorve o estilo de pensamento de outra disciplina. Esta realidade fluida constantemente se reorganiza, estilos de pensamento em certos momentos dominam a abordagem a determinados problemas, e a disciplina encorpa-se, mas solucionadas certas questões, os problemas nascentes ou remanescentes são atribuídos a outras disciplinas, transferindo-se o foco da investigação e da pesquisa, e eventualmente da atuação clínica.

A reorganização do rizoma não se opera sem reconfiguração de instâncias de poder. É próprio do rizoma a possibilidade de uma linha de fuga, a ruptura, mas há sempre a possibilidade – o risco – de linhas de fuga levarem a traços que reencontram organizações que reestratificam o conjunto, reordenam novamente o poder a um significante, um sujeito, entidade tentacular, polvo, emitindo tentáculos a partir de um centro, exercício de controle e poder.

O rizoma não comporta um eixo genérico ou estrutura gerativa, isso é próprio da árvore. A árvore é a tentativa de dar ao rizoma um sentido, uma organização. A exploração do rizoma dá-se por mapas conectados ao próprio rizoma, não exteriores a ele, como a árvore.

O rizoma, não podemos esquadrinhá-lo inteiro, podemos adentrá-lo, mas deixá-lo em certo momento é difícil, pois não há dualidade, dentro ou fora, bom ou mau, é estar sempre no meio, o meio deste texto. Pensar um currículo rizoma é exatamente abrir mão do método, da pedagogia, da iniciação, quando começamos, estávamos no meio de tudo. Desnecessário perguntar de onde vim, onde vou, qual foi o começo, qual será o fim.

Nesse meio, por onde entrei, estava meu antigo professor e sua árvore.

Descrição da imagem: uma árvore, com raízes, tronco e copa. Nas raízes, estão nomeadas as disciplinas do ciclo básico: anatomia, embriologia, histologia, fisiologia, etc. O tronco é a patologia geral. Os galhos que partem do tronco formam a patologia sistêmica. Na copa, estão as especialidades médicas: cirurgia, clínica, dermatologia, neurologia, ginecologia, etc.

 

Adenocarcinoma in sinonasal mucous membrane expressing PSA and CDX-2

26/04/2019

Adenocarcinoma in sinonasal mucous membrane expressing PSA and CDX-2: report of a case with emphasis on the diagnostic decision process as to the origin of the tumor

Gil Patrus Pena1; José de Souza Andrade-Filho2, II; Roberto Porto Fonseca3

1-Médico patologista do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital Felício Rocho, Belo Horizonte-MG

2-Professor titular de Patologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG)

3-Médico oncologista do Hospital Felício Rocho

Translated from: Pena, Gil Patrus, Andrade-Filho, José de Souza, & Fonseca, Roberto Porto. (2009). Adenocarcinoma em mucosa sinonasal expressando PSA e CDX-2: apresentação de um caso com ênfase no processo de decisão diagnóstica quanto à origem do tumor. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, 45(2), 139-145. https://dx.doi.org/10.1590/S1676-24442009000200009

ABSTRACT

In this report, we explore an unusual case of adenocarcinoma detected in the sinonasal mucous membrane in order to illustrate the diagnostic decision process in the immunohistochemical diagnosis. The patient was a 86-year-old man with an intranasal mass. In the immunohistochemical study, it was found expression for both PSA and CDX-2, raising the divergent diagnostic possibilities of a prostatic adenocarcinoma metastasis or an intestinal type sinonasal adenocarcinoma. In search for a solution for this diagnostic dilemma, we tried to establish how these immunohistochemical markers could be confronted in a diagnostic decision by defining the qualities that good immunohistochemical markers consist of and how the panel markers may be compared as to these qualities and the diagnostic hypotheses. In this exercise, important aspects of the diagnostic process in pathology are revealed.

Key words: PSA, CDX-2, Sinonasal adenocarcinoma, Diagnostic decision-making

Introduction

Case reports are commonly dealt with in the surgical pathology literature and in specialty meetings presentations, such as slide seminars. In general, these reports are formatted departing from the diagnostic conclusion, with presentation of clinical data, macro and microscopic findings, and immunohistochemical results, followed by comments on the clinical and pathologic presentation, differential diagnoses, natural history of the disease and evolution of the case. Presented this way, they constitute a valuable instrument for the dissemination and accumulation of knowledge in pathology, especially with regard to rare cases or peculiar clinical or pathological presentations.

In this paper, we present a different approach to the case report, emphasizing the diagnostic process leading to a diagnostic conclusion. Based on data on the case – clinical history, histological findings and immunohistochemical markers, we present strategies involved in the evaluation of these parameters, discussing their properties, in particular their sensitivity and specificity.

Case report

A 86-year-old male patient presented with an intranasal tumoral mass. The biopsy revealed an infiltrating adenocarcinoma, made up of cells with relatively clear and lacy cytoplasm. The nuclei were rounded or oval, with delicate chromatin and evident nucleoli. Neoplastic cells were arranged in glandular formations with lumen occupied by small amount of necrotic material and leukocytes. Immunohistochemistry evaluation of the case showed cytoplasmic expression of prostate specific antigen (PSA) and nuclear expression of CDX-2 (Figure 1), in addition to labeling for AE1/AE3 anti-cytokeratin. The expression of carcinoembryonic antigen (CEA) (polyclonal) was doubtful, due to the presence of necrosis. Thyroid transcription factor 1 (TTF-1), chromogranin A, cytokeratin 7, and cytokeratin 20 were negative.

Based on the data of the case, diagnostic hypotheses were elaborated (Figure 2). The possibility of metastatic prostatic adenocarcinoma was raised because of the expression of PSA. The possibility of intestinal-type primary sinonasal adenocarcinoma (ITAC) was raised because of the expression of CDX-2. The expression of CDX-2 could also support the diagnosis of intestinal adenocarcinoma metastasis. Another hypothesis raised was that of a salivary gland epithelial neoplasm, given existent reports of PSA expression in these tumors. The selection of the most probable hypothesis depends on the value attributed to the results of these immunohistochemical markers. In particular, CDX-2 and PSA expression in the neoplasm point to opposite diagnostic directions. In this situation, which result is the most relevant and should be considered more strongly in the diagnostic decision?

The good marker

The good immunohistochemical marker is the one that helps us in the diagnostic decision, indicating the possibility that has a higher chance to correspond to the diagnosis. To go from the result seen in any reaction to the conclusion of the case, we must provide warrants that allow us to take that step. As warrants, the pathologist can retrieve previous results of that marker in similar diagnostic situations. These data (data that we use as warrant), in turn, may require a backing. This backing can be his own personal experience or reports published in the literature. These are the data that establish a warrant.

The best warrant would be one that combines the result of one or more markers in relation to an expectation of the diagnosis, prior to the test, in the form of a probability that we call predictive value. This value gives us the probability of the presence of the target disease, given the result of a particular marker in a specific clinical-pathological situation. In pathological diagnosis, this pre-test probability is sometimes roughly estimated when we evaluate our hypothesis in relation to the distribution of the diagnosis by gender, age or anatomical location, for example. However, in most cases, we do not have population data that allow us to use Bayesian inference. Simplistically, the Bayes theorem allows the calculation of the probability that the patient belongs to a defined diagnostic category, given the presence of a particular finding or a result of a test (5)

In many situations, given the impossibility of estimating satisfactory predictive values, we use other warrants, which enable us to include or exclude hypotheses from our diagnostic reasoning. The best theoretical marker would allow us to include only one hypothesis, while excluding all other alternative hypotheses.

To exclude a hypothesis, we need a marker that is present in most cases with the disease. Thus, a negative result would indicate that the disease was absent. The occurrence of a false-negative, that is, the absence of the marker in that target condition would be a rare event. The property of the marker that helps us to exclude a hypothesis is called sensitivity.

To include a hypothesis, we need a marker that is absent in virtually all cases without the target condition. Thus, the positive result would indicate the presence of this condition. To put it in another way, the occurrence of a false-positive, that is, the presence of the marker in a case without that disease is a rare event. This property is called specificity.

High values for the specificity or sensitivity of a particular marker are useful, but in general our tendency is to use sensitive markers to confirm hypotheses and specific markers to rule out hypotheses when what should be done is exactly the opposite: high sensitivity markers are useful for excluding hypotheses and markers with high specificity are useful for including or confirming hypotheses.

Based on these properties, we can summarize two small rules to include or exclude hypotheses in our diagnostic reasoning: (15)

If the specificity is high, a positive result includes diagnosis (when a sign has a High Specificity, a Positive result rules in diagnosis [SpPin]).

If the sensitivity is high, a negative result excludes diagnosis (when a sign has a High Sensitivity, a Negative result rules out diagnosis [SnNout]).

Another way to summarize the performance of a marker in relation to a given hypothesis is the likelihood ratio. This calculation contrasts the proportion of patients with and without the target condition, that expresses (or not) a particular marker. The likelihood ratio denotes the odds that the expression of a given marker would be expected in a case with the target condition, as opposed to a case without this condition. The likelihood ratio for a positive test can be calculated by the ratio of the true-positive rate to the false-positive rate (sensitivity / 1-specificity). For a negative test, the likelihood ratio is calculated by the ratio of the false-negative to the true-negative ratio (1-sensitivity / specificity). The likelihood ratio for a negative test is interpreted as the chance of the patient with the negative marker having the disease. One of the advantages of the likelihood ratio is that it can be calculated for different levels of expression (focal, diffuse), and not only on two levels, positive or negative.

These propositions, which are highly valued in clinical epidemiology, have received little attention in the diagnostic practice in pathology. Good discussions on this subject were presented by Foucar (1996, 2001) (4, 5).

Searching for warrants in the literature

In order to decide which of the formulated hypotheses is the one that offers the best diagnosis, we searched the literature for published papers on the performance of these markers (PSA, CDX-2 and CK7 / CK20) in relation to these diagnostic possibilities. Whenever possible, as a strategy, we estimated the sensitivity and specificity of these markers in relation to the diagnosis of prostate adenocarcinoma and ITAC.

PSA and prostatic adenocarcinoma

PSA is used as a immunohistochemical marker for prostate neoplasms. The sensitivity and specificity rates presented below refer to the diagnosis of lesions of prostatic origin, as opposed to lesions from other organs. Particularly, we were interested in how this marker would perform in lesions of the salivary gland type or with intestinal differentiation.

Stein et al. (1982) (16) studied 15 cases of prostate adenocarcinomas, observing PSA expression in 12. They report high sensitivity for tumors with Gleason sum up to nine. This study did not evaluate the expression of the marker in other neoplasms, and it is not possible to estimate its specificity.

Owens et al. (2007) (13) evaluated 15 cases of adenocarcinomas in biopsies (10 prostate and five colorectal cases). PSA showed sensitivity of 80% and specificity of 100% when contrasted with colorectal carcinoma.

Varma et al. (2002) (18) demonstrated 100% specificity and sensitivity of PSA for the diagnosis of prostatic carcinoma. The marker was present in 60 of 60 cases of prostate adenocarcinomas and absent in 310 other tumors, including cases of salivary gland and colon.

van Krieken (1993) (17) reported the expression of PSA in 15 of 22 cases of salivary gland tumors. The specificity of the marker, for the diagnosis of prostate adenocarcinoma in this study was only 32%.

Fan et al. (2000) (3) observed PSA expression in two of 12 cases of salivary gland duct carcinoma, demonstrating a specificity of 83% of the marker in relation to these tumors.

PSA and sinonasal adenocarcinoma

We did not find studies on the expression of PSA in sinonasal adenocarcinoma, in the literature.

CDX-2 and prostatic adenocarcinoma

CDX-2 is a marker used to demonstrate intestinal origin or differentiation in neoplasms. In the data presented below, we consider the intestinal tumors as the target disease, and the sensitivity values reflect the frequency of positive cases in these lesions. For the specificity values, we took into account the frequency of “false-positive” results in cases of prostatic neoplasia.

Kaimaktchiev et al.(2004) (9) found CDX-2 expression in 950 of 1,109 colorectal carcinoma samples tested, which allows the estimation of a sensitivity of 85.7% of CDX-2 in relation to colorectal adenocarcinoma. The authors did not observe CDX-2 expression in 92 cases of prostatic adenocarcinoma (specificity of 100%). The specificity was 93% when evaluated tumors of stomach, ovary and other sites.

Owens et al. (2007) (13) evaluated the expression of CDX-2 in 10 cases of prostatic adenocarcinomas and none of them was positive (100% specificity). In that study, three out of five colonic adenocarcinomas were positive (sensitivity 60%).

The study of Werling et al. (2003) (19) demonstrated the expression of CDX-2 in one of 24 prostatic adenocarcinomas, resulting in a 96% specificity. The marker was positive in 74 of 75 colorectal adenocarcinomas (sensitivity of 99%).

Herawi et al. (2007) (7) also evaluated the expression of CDX-2 in prostatic adenocarcinomas. They reported two cases in which the marker was positive in prostate biopsies. From these cases, the investigation was extended to 70 samples of primary adenocarcinomas of the prostate, and expression of the marker was observed in four cases (specificity of 94.3%). In the evaluation of 68 samples of metastatic prostatic adenocarcinomas, no case was positive for CDX-2 (specificity of 100%).

Leite et al. (2008) (11) demonstrated CDX-2 expression in nine of 29 prostatic adenocarcinomas with special morphology (mucinous, sigmoidal ring and focal mucinous differentiation) and in two of 18 cases of adenocarcinomas of the usual acinar type. CDX-2, in this study, presented a specificity ranging from 71% to 89%.

In the study by De Lott et al. (2005) (2), samples of 629 tumors from several sites were studied. The authors observed CDX-2 expression in 51 of 71 colorectal adenocarcinomas, estimating a sensitivity of 72%. In the other tumors tested, the marker was positive in 22 of 558 (96.1% specificity). In this study, no samples of prostate tumors were included, so that we cannot extract from their results any warrant applicable to our case.

CDX-2, CK7 / CK20 and sinonasal adenocarcinomas

Primary sinonasal adenocarcinomas can be classified as intestinal (ITAC) and other than intestinal (non-ITAC), the latter category including low grade, tubulopapillary or salivary gland type lesions. The following studies evaluate the performance of CDX-2 and cytokeratins 7 and 20 in this group of lesions.

Franchi et al. (2004) (6) evaluated the expression of CDX-2 and cytokeratins 7 and 20 in 25 cases of ITAC and in 14 cases of non-ITAC (tubulo-papillary and salivary gland-type). In this study, cytokeratin 7 behaved as a relatively high sensitivity marker for all lesions, with a general positivity, including ITAC and non-ITAC, of 36 in 39 cases (22/25 ITAC and 14/14 non- ITAC). CDX-2 and cytokeratin 20 had relatively high sensitivity and specificity in ITAC diagnosis, as opposed to non-ITAC: in ITACs, CDX-2 was positive in 20 cases (sensitivity 80%), cytokeratin 20 was positive in 21 cases (sensitivity of 84%). In non-ITAC adenocarcinomas, no case expressed CDX-2 or cytokeratin 20 (100% specificity).

In a similar study, Cathro & Mills (6) observed CK7 expression in 20 of 22 cases of primary adenocarcinomas (8/9 in ITAC and 12/13 in non-ITAC, estimating sensitivity of 89% and 92% respectively). In this study, the sensitivities of CK20 and CDX-2 were 67% and 78%, in the diagnosis of ITACs. No non-ITAC case expressed CK20 or CDX-2 (100% specificity).

Ortiz-Rey et al. (2005) (12) found a lower sensitivity of 57% for cytokeratin 7 in the diagnosis of ITAC (eight positive cases in 14 studied). Cytokeratin 20 and CDX-2 were positive in all cases (100% sensitivity).

A similar result was observed by Kennedy et al. (2004) (10), who demonstrated a 60% sensitivity for cytokeratin 7 in the ITAC diagnosis (6 positive cases in 10 studied) and 100% sensitivity for cytokeratin 20 and CDX-2 (all 10 positive cases for both markers). These authors also evaluated two non-ITAC cases, both presenting CK7-positive / CK20-negative / CDX-2-negative profile.

Summary of literature data

In the present case, we had positive results for CDX-2 and PSA and we are interested in the specificity of these markers in relation to prostatic carcinoma and ITAC (these are the markers that may confirm a hypothesis). At the same time, as we observed negative results for cytokeratins 7 and 20, we are more interested in knowing the sensitivity of these markers (these markers can be used to exclude a hypothesis).

From the literature, we observed that PSA is a very specific marker for prostate adenocarcinoma, except for positive cases of salivary gland tumors. However, it was not possible to determine the specificity of this marker in relation to primary sinonasal adenocarcinoma, since we could not identify cases in the literature specifically evaluating this situation.

For CDX-2, we observed a “false-positive” rate that reached 29% in relation to prostatic tumors, which did not allow us to safely include the diagnosis of adenocarcinoma with intestinal differentiation as a single and definitive diagnostic hypothesis.

The combined expression of cytokeratin 7 and cytokeratin 20 showed a sensitivity of 57% to 100% for ITACs. The negativity for both markers observed in our case may provide us with a tendency to exclude this possibility.

Diagnosis

As we do not have 100% sensitive and specific markers, an amount of diagnostic uncertainty may remain. The pathological diagnosis should reflect this uncertainty, produced not only by the known possibility of a false-positive or false-negative, but also by the lack of published data on a certain diagnostic situation experienced in practice.

In the present case, we established the diagnosis of a probable prostate adenocarcinoma  metastatic to the sinonasal region. As warrants for this conclusion, we presented data indicating a high specificity of PSA and a lower specificity of CDX-2 (not allowing to include the ITAC hypothesis with the same force). An auxiliary assurance was the negativity for cytokeratins 7 and 20, markers that, taken together, presented intermediate to high sensitivity for primary adenocarcinomas, at least in some case series. Also as a warrant to this conclusion, we can also mention cases published in the literature of metastatic prostate adenocarcinomas in the sinonasal region (8).

In our conclusion, we qualified the diagnosis as probable, because we were not absolutely sure that this diagnostic proposition would be ultimately confirmed, since we could not definitively rule out the possibility of a primary sinonasal adenocarcinoma, with unexpected PSA expression, either because of a possible identity with a salivary gland type tumor or because of literature gap regarding the expression of PSA among ITAC, precluding estimation of its specificity in this diagnostic context.

Other domains of anatomopathological and immunohistochemical diagnoses

The pathological diagnosis includes other domains, in addition to the cognitive domain that we have exercised up to now, which may help us to manage uncertainty (14). In the communicative domain, we elaborated a histopathological report, expressing these uncertainties, possibilities and diagnostic probabilities. In the normative domain, we must have paid attention to the diagnostic rules (SpPin and SnNout), assigning the appropriate value to each marker in each context and diagnostic decision. In the domain of medical conduct, we suggested to the attending physician to investigate the history of prostate adenocarcinoma and request the serum PSA analysis.

Case development, assessment and learning

The information on the outcome of the case is of fundamental importance in the evaluation of the diagnostic process. Clinical investigation has raised a history of radical prostatectomy 20 years before, and the current serum PSA was 4762 ng/mL. It was then established a definitive diagnosis of prostate adenocarcinoma (with CDX-2 expression), metastatic to the sinonasal region.

The performance of the immunohistochemical markers was consistent with that reported in the literature: CDX-2 may be expressed in prostatic adenocarcinomas, and the result obtained for PSA was a true-positive. The information on the outcome of the case, with the confirmation or refutation of the diagnostic propositions, allows the incorporation of the learning from the case to the pathologist’s experience, composing the basis of the tacit knowledge in pathology,

Final considerations

The diagnostic pathology consists in the elaboration of diagnostic conclusions based on the data obtained from the case (clinical information, histological findings, immunohistochemical results, etc). A safe conclusion depends on the existence of warrants that allow one to correctly deduce that the patient can be framed within a diagnostic category. The knowledge of the performance of immunohistochemical markers in different diagnostic settings is a fundamental warrant in the diagnostic process. The backing of these warrants, in turn, is an inductive process, through the study of a series of cases and controls, in which data and diagnoses are independently verified. This is an important role of the pathologists involved in the investigative pathology: They produce the evidence that provides backings of the warrants used in the diagnostic pathology.

Evidence-based pathology presupposes an investigative pathology coordinated with the diagnostic practice, in order to establish useful warrants for the diagnostic process. In this sense, data on the sensitivity and specificity of the markers in relation to different diagnoses should mirror problematic situations faced in the diagnostic practice. Systematic reviews or meta-analyzes, evaluating the performance of these markers in the different centers, adjusting the possible effect of technical variables, different clones, can produce solid evidence to corroborate and authorize the use of these markers as warrants in the diagnostic reasoning of a case.

References

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Adeus, amigos.

14/01/2019

O rosto se desenhou na parede branca do quarto, próximo ao teto, mofopintura produzida por fungos no reboco úmido, alguma infiltração. Todos nos demos conta que era realmente um rosto, buracos negros, formando-se sobre o muro branco. Estes dois estratos superpostos, rosto-muro, despertaram-nos curiosidade semiótica, por mágica que era formar-se daquela maneira, e estando no desterreno das coisas mágicas, houve-se por bem ver e não comentar. O sobrado guardava seus segredos, tia Sinhá, seu amor proibido pelo negro … Também isso não se comentava. O rosto desenhado na parede soube-se entre nós ser o dele, fantasma que rondaria aqueles cômodos. Da parede úmida, a figura do rosto nos observava, absorvia, abservava. Buraco negro.

Junto a parede deste lado, tinha a cômoda, na parede oposta, a cama, poltrona com escabelo, guarda-roupa. Acho que um ou dois vestidos pendurados, peças de alta costura.

Era sentado na poltrona que se podia olhar olho no olho, no rosto do muro branco, espelho, nosso próprio rosto, buracos dispostos sobre muro, vendo se vendo, círculo alça vindo indo viagem sem fim. Tinha um certo consumo, substâncias, percepções adormecidas ou facilitadas, mas a visão do rosto, compartilhada em silêncio por nós era real e transcendente, essência de uma existência, desenhada por capricho sobre branco, pintura úmida e fria.

Estratos, nossos rostos, branco significância muro, buracos subjetivação negros, nossos rostos, redundância, gênese do rosto, na parte da frente da cabeça, mas da cabeça não faz parte, veja o desenho do rosto do muro branco, onde não há cabeça, não há corpo. Cabeça então muro branco, onde se assentam buracos, desenha rosto. Foi quando percebemos o rosto desenhado em muro, produto que cogitamos transcendente, obra de espíritos, condição da natureza é que não produziria, pareidolia.

Memória, falta-me o nome do negro, encontro com tia Sinhá, o velho sobrado, que histórias guarda, posso contá-las, não posso, sequer sugerir-lhe o enredo, amor proibido, quem poderá proibir o amor, a paixão, se corresponde a paixão correspondida de duas pessoas, uma pela outra, razões não haverá, escolha, que escolhe por nós, que liberdade temos, que produz nossa existência, angústia, desamparo. Uma vez me disseram o nome.

Guardado. Tenho o nome guardado, não sei onde, o encontrarei algum momento, mas seu rosto mofo branco pintura me lembro. Era dele, supus. Era dele, ficamos certos em dado momento. Mas rosto, superfície, nem mesmo o nosso nos pertence, não é individual, significação-subjetivação.

Rostidade, conceito Deleuze-Guattariano. Tristeza, alegria, raiva, paixão estampam-se nos rostos, nossos, da multidão perdida do mundo, rosto ressonância, identidade desindividual, rostos todos temos, na cara, mas há rostos fetiches, pé, mão, pênis, vagina rostificados.

Carnaval. Período de rostificar. Pelo amor de deus, seres pré-históricos, uga, uga, por cinco dias, encarnam personagem, a guerra do fogo, transitam aproximam eras, ceno-mesozoica, encontro improvável de estratos, loucos, mas não por isso, arte, interpretação. Cainágua, figura carnavelesca oliveirense, vestimenta dominó, máscara pontuda sobre a cabeça, rosto pano colorido, buracos negros, olhos passagem.

“Mas ainda não explicamos nada do que sentimos”(1). “Nada a explicar, nada a interpretar” (2).

Nada a ver. A gente sempre dizia nada a ver.

Máquina abstrata. Produção de rostos. Aplica subjetividade ao buraco negro, significância a muro branco. Rosto concreto, desenhado sobre muro branco parede. Verdade. Todos vimos.

Da foto que guardo, eu sentado na poltrona, sentando na cama meu amigo, sobre a cômoda a câmara, atrás da lente a parede, película fotossensível, buraco, máquina. Na foto, nossos rostos, outro estrato, momento, faço propositada confusão de eras, já nem era carnaval.

Máquina abstrata, tudo é produção.

Produção. O vândalo entrou no quarto um dia, desenhou boca vermelha de batom, sobre rosto, parede branca, buraco negro, mofo. Ninguém o viu fazendo isso, sabemos quem foi. Lábio, arregaçamento da mucosa vermelha, para o exterior, pinta-lhe o batom mais vermelho, desterritório, sobressalto.

Artevandalismo, desconstrução, boca parcial decepada, costurada. Desterritorialização. Nosso rosto, o meu na foto, interrogo-lhe, o que lhe há por trás. “Introduzimo-nos em um rosto mais do que possuímos um”(3). Reconheço-me? Não. Sim. Resisto a categorização binária. Procuro rosto correspondência biunívoca. Supõe-se mesmo como deva ser o rosto da loucura, sim-não. conforme, não conforme. Máquina de rostidade, rosto homem branco, desvio padrão, variância, desviança, é um negro, não rostificado, não é nós, proíba-se em nome de cristo esse amor. Rosto, instância de civilização.

Mancha mofo Rorschach, abstrata figura rosto, vândala boca vermelha, impõe-lhe concretude, rostificação, violência.

Domestica, domina, aparta. Disciplina.

Boca vermelha, beijo, boca-boca. Fluxo, influxo, conexão, extração, o seio – a boca. Permitirá-me o beijo que lhe dei, fluxo tempo de produção: “e depois”…

Os rostos, livro de rostos, perfis. Alguma ocasião, por ali, estranho mundo instrumental, os revi, mesmo os que já se tinham ido, nem mesmo destes me despedi.

Mistérios inscritos, não escritos.

Rostos não me revelam nem mesmo a mim quem sou.

  1. Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. Ano zero – rostidade. In: _____ Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. vol.3.  São Paulo: Editora 34, 1996. p.36.
  2. Ibid. p.33.
  3. Ibid. p.44.

Sinceridade

11/11/2018

Passaram-se alguns anos desde que escrevi “não vou prá rua”. Sinto ainda a falta do debate, não entendo “rede social” – facebook, twitter – como espaços adequados para a construção dialógica do pensamento. O debate não se pode fazer sem profundidade. A verdade pura, como um procedimento de purificação química, exige decantação, depuração, filtração. A verdade tem seu duplo, no sentido filosófico, e num sentido poético, é meia verdade. É preciso estudo e preparo para debater. Podemos, devemos, em qualquer momento, expressar ideia para tudo, é mesmo pelo discurso, pela expressão do que me diz, é que posso compreender o seu pensamento. É por contrapor o seu discurso, ao seu próprio discurso e à sua ação, é que posso demandar-lhe a clareza de discurso, apontar-lhe possíveis contradições, pedir que apresente justificações, respondendo a elas, pode seu discurso resistir ou sucumbir ou ao contrário, recuperar-se ou ser resgatado. A comunicação está intimamente ligada a procedimentos discursivos e argumentos para comprovar a pretensão de validade do discurso. A validade do discurso pode ser questionada em relação à sua inteligibilidade, ao seu conteúdo de verdade, à sua retidão e à sua veracidade.

Por inteligibilidade, queremos expressar a situação em que é discurso não é claramente compreensível, e perguntamos ao nosso interlocutor, o que ele pretende dizer, ou como devemos entender o que ele diz. É o jogo das palavras ou a expressão simbólica que deve operar dentro do mesmo sistema de regras entre os dialogantes.  Respostas dadas a perguntas deste tipo são interpretações.

Por verdade, queremos expressar a congruência entre o discurso e o conjunto das coisas e dos fatos. Perguntamos, as coisas são realmente como você diz? Por que são as coisas assim, como me diz, e não de outro modo? Respostas que fornecemos a estas indagações são asserções ou afirmativas. A verdade não pode contradizer a experiência, aquilo que designamos como fato. A validade da verdade, entretanto, não se reduz à validade da experiência ou do fato relatado, estes servem de suporte ou garantia ao argumento com que pretendemos afirmar a verdade.

Por retidão ou correção normativa, queremos expressar a adequação do discurso ao conjunto de normas a que se submetem os dialogantes. Pergunta-se, por que fez as coisas assim, e não de outro modo? A isso respondemos com justificativas, comunicando que procedimentos seguimos, que orientaram nossas ações ou pensamentos.

Por veracidade, expresso a correspondência do discurso como o pensamento daquele que discursa. Questionamos se nos engana aquele que discursa, ou se engana-se a si mesmo. A dúvida sobre a veracidade do discurso, não se dirige àquele que discursa, mas a uma terceira parte. Veracidade tem o sentido de sinceridade, que é o dizer a verdade, sem enganar, ou sem intenção de enganar.

É por debater a sinceridade que faço este arrazoado desproporcional. Em post do dia 3 de novembro às 12:51, Raquel C. Almeida brindou-me com pertinente reflexão no Facebook:

A palavra sinceridade vem de “sem cera”.
Tem de topar ser despolido mesmo não pretendendo ser inadequado.
A franqueza então, acho que seria tipo a sinceridade com a cera arrancada na unha.
É daquelas características que ficam na zona cinzenta entre defeito e qualidade, dependendo do que sentimos pela pessoa que a tem.
Não é legal do tipo gostoso, mas tem lá seus contextos de ocorrência compreensíveis em graus variados de acordo com emissores e receptores.
Tem quem goste mais de tudo encerado mesmo.
E tem quem prefira saber do cru pra entender diante do que se encontra.
Acho super completa a ideia de que a sinceridade tem dois pré-requisitos: honestidade e coragem.
De qualquer forma, o que importa pra quem se importa é o conteúdo que se expõe a partir da expressão.
E a partir do conteúdo também nascem todas as possibilidades de exposição dos contrapontos.
Tem quem considere o presidente eleito sincero.
Acho que até eu considerava, apesar de ter náusea diante do conteúdo.
Agora, no entanto, depois de eleito, essa característica não está se sustentando pra mim.
Até porque agora, a meu ver, fica muito mais difícil manter essa postura já que o conteúdo obviamente vai ser colocado em exposição plena e cheque- compromisso com resultados, responsabilidades e mudanças esperadas.
Precisava ser uma sinceridade sincera pra se manter.
Ele, que é presidente eleito, fala, se recusa a falar, seleciona plataformas e formas de se colocar.
Eu interpreto e não gosto.
Mas os gentlemen iluminados dirão que isso é torcida contra, não a expressão absolutamente legítima do meu espaço também legítimo de interpretação dos fatos.
Chato é todo mundo que te incomoda.
Escolha o seu, eu escolho o meu, todos escolhemos os nossos; e se, como e por que os temos por perto.

Sincero, sem cera, é etimologia que me parece construída ao reverso, a partir do sentido atual da palavra e sustentada na analogia de sua sonoridade, não necessariamente da sua raiz latina, palavra que tinha um sentido antes e cuja denotação fora então apropriada em outro sentido. O já velho dicionário que possuo, “Novo dicionário Aurélio”, aponta a origem do lat. sinceru, sem malícia, sem mistura, puro. A discussão etimológica é paleontológica, arqueológica, em que buscamos remontar ao início de uma ideia, e ver como veio se modificando no tempo, seu conceito e seu uso. Não sou filólogo. Atenho-me mais a uma discussão epistemológica, sobre a construção do discurso e a questão da sinceridade, como pretensão de validade das proposições que afirmamos.

Um ponto de partida, necessário para a discussão do tema, é definir o conjunto de regras que nos guiam, nas ações comunicativas. Dois mundos distintos configuram-se, um em que se estabelecem ações estratégicas, orientadas à obtenção de um objetivo, que são as ações desenvolvidas no mundo sistêmico. Em outro mundo, o mundo vivido, guiamo-nos pelas ações comunicativas, orientadas ao entendimento. No mundo sistêmico, a sinceridade tem lugar apenas nas ações abertamente estratégicas. O mais das vezes, contudo, as ações estratégicas são encobertas, seja admitindo-se um engano inconsciente (distorção sistemática da comunicação) ou engano deliberado (manipulação).

A veracidade, como pretensão de validade do discurso, demonstra a correspondência entre o que comunicamos e aquilo que entendemos como verdade, no domínio da natureza interior. O ato de discurso a que se refere faz referência a realidade subjetiva, como expressão de experiências subjetivas, que não podem ser colocadas à disposição do exame cognitivo (de seu conteúdo proposicional) ou interativo (das instâncias reguladoras do relacionamento interpessoal). Neste modo de comunicação (expressivo), o tema a se discutir é a intenção daquele que discursa.

Desagrada-me discutir o mundo da política (expressão sincera de cunho subjetivo), pois com poucas exceções, as pessoas não dispõem a debater a validade de seu discurso, em aspectos da realidade objetiva ou normativa, que possamos submeter, conjuntamente, ao exame de sua verdade ou retidão, mas quase sempre apoiam-se na experiência subjetiva, na crença superficial ou no sentimento de repulsa ou adoração, que escapam à possibilidade de exame cognitivo, normativo ou intersubjetivo. No mundo sistêmico, que abriga o mundo da política dos políticos, que estrategicamente desenhado para a consecução de objetivos, não há mesmo espaço para a discussão da sinceridade, ainda que se possa discutir a intenção do discurso.

No mundo vivido, o das relações entre os seres humanos capazes de discurso, entendidos como aqueles que se preocupam com a autenticidade de seu discurso, cabe bem discutir a sinceridade. E é nas relações dialógicas do ser humano que encontramos o outro. E a este meu mundo subjetivo, contrapõe-se o outro, com seu vasto e complexo mundo subjetivo, se tomo o outro por minha medida. A intenção do outro, como a minha própria, não se reduz a estereótipos, da direita ou esquerda, homo ou hétero, ou outras dicotomias cara ou coroa irrelevantes. Ao longo da vida, parece-me que as pessoas se simplifiquem, apoiam-se em leituras de mundo que lhe parecem reais, apegam-se a esse modo de realidade e param de se questionar (se é que algum dia se questionaram) porque o mundo é assim. Habitam um mundo de certezas, eu não sei, esse limite do não saber, é o que me abre as portas do outro, o que vem a mim como o desconhecido.

A outroedade, “eu” do outro, é o pêndulo, o rodopio. É encontro de pensamentos Maturana, Habermas e Freire. É por minha concepção dialógica de mundo, por abrir espaço para a legitimidade do outro, por estender essa liberdade reflexiva ao limite, é que, sobre o presidente eleito, também eu interpreto e tampouco gosto. E não é mesmo sobre tratar da sua sinceridade.

É sobre o conteúdo propositivo do seu discurso, mas é um discurso sem conteúdo. É o vazio de ideias das manifestações de 2013. O discurso da negativa. A negação do outro. A contenção do pensamento.

Não é surpresa a sua negação ao pensamento de Paulo Freire. Não será surpresa se as supressões à liberdade de pensamento cercearem cada vez mais o limite até onde possamos pensar e nos manifestar. Talvez a intenção seja a de nos impor um mundo estreito de certezas, muitas das quais já estavam tensionadas, ou mesmo alargadas.

A estreiteza de pensamento nega o multiverso, o outro como legítimo. O pensamento livre admite a cultura da diversidade, onde o outro manifesta seu pensamento, aceito como legítimo.

Resistir, desde já, é preciso.

bricoleur

19/01/2018

DSCN2552É quase certo que nenhum de nós se lembra mais disso, eu digo os vivos, os mortos transeuntam outros mundos, onde a memória abrange a totalidade das lembranças, tudo a um só momento que se estende eterno.

Eu, ainda aqui neste mundo, tenho a memória fragmentada, não poderia mesmo lembrar-me de tudo, a existência era um pouco maluca naquele tempo, muito momento não retive na memória, a consciência da própria existência anestesiada por aquilo que bebíamos, ou de outro modo consumíamos. Fizemos o compromisso, disto me lembro, embora talvez estivéssemos certos de que não cumpriríamos, como bem não cumprimos. Ficou ali o caco na gaveta, bem guardado comigo, na impossibilidade de cumprir-se o desidério, pelo estatuto do acordo etílico e volátil lembrança, tempos de memórias apenas recentes, não era incomum amanhecer e buscar pelo acontecido que nos contavam, como viemos parar ali, onde dormimos, o acordar de um tempo do qual não permaneceu registro.

Ali o fragmento, por isso guardado, ele a memória do que aconteceu. Por muitos anos. Talvez uns trinta, ou mais. Era o de uma garrafa, lançada ao quintal, partida em cacos verdes, cuidadosamente distribuídos entre todos nós ali reunidos, cada um com seu fragmento, com a promessa de que algum dia ainda nos reuniríamos, cada um com seu pequeno fragmento guardado daquele momento.
A promessa, empenho que se lança ao futuro incerteza, pretensa ideia de que podemos traçar a existência no porvir, e o tempo, no caminho que abre produzindo a existência, segue curso próprio, alheio ao nosso próprio existir, dado que não lhe concedemos parar ou seguir, nem o forçamos regredir, a essência do que fomos, somos, diluindo nesse acumular de anos, arte bruta que não para de receber adendos, retoques, conexão, acoplamento.

O fragmento garrafa, substância vidro, marca de que estivemos ali reunidos, felizes e brindando à vida, e dali nos despedimos, comprometidos a estar juntos ainda algum dia.

Tortuoso o caminho do tempo, o que me trouxe de volta a este fragmento, encontrei o ainda embrulhado na gaveta. Tudo se passou sobre o plano prático. Foi na papelaria, onde estava por outro motivo, que encontrei o canudo de papelão, com diâmetro apropriado, item que faltava para a completação de antigo projeto, também há muito engavetado. Retângulos de espelho aguardavam para tornarem-se caleidoscópio. Para este item do projeto, dirigi-me especificamente à vidraçaria, com cálculo feito para o triângulo inscrito em circunferência de 4 cm de diâmetro. Tento, mentalmente, lembrar ou re-deduzir a fórmula que calcula o lado do triângulo inscrito na circunferência. Já havia feito caleidoscópio, ofício de bricoleur, uma vez por encomenda, dei-lhe um valor e vendi, revestido de couro cru que, mal cortado, deixou fresta descoberta, emendada com pequeno fiapo do couro; é do remendo que me lembro.

Trouxe então o canudo adquirido, cujo diâmetro serviu perfeitamente para os retângulos de vidro, o comprimento precisou ser cortado, o que pode ser feito.
Da encomenda à vidraçaria, tinha também os círculos de vidro, no diâmetro exato, que deveriam guardar o espaço onde os fragmentos livres comporiam novas estruturas.

Vidros coloridos, em pequenos fragmentos, era o que procurava para concluir a construção do caleidoscópio, gavetas, procurei, trouxe-me a lembrança daqueles fragmentos, guardados ainda, não como lembrança, estava ali o material, concluí o projeto, no reflexo reflexo, mosaicas prosaicas simetrias, redesenhei garrafa, não mais inteira, mas pedaço de garrafa, apenas o que trouxe comigo, por certo o único que restou intacto fragmento do momento, guardado ali no propósito de se reunir e de nos reunir.

Uma história, essa que conto, reconta outras histórias, pulo de uma a outra, outra e uma então a mesma história. Primitivo pensamento, selvagem, é  pelo concreto do fragmento vítreo que trafego, pois essa é a atividade do bricoleur: falta-lhe a criação artística do homem da arte; não alcança a subordinação do engenheiro ao projeto objetivo que orienta a procura e o desenho das peças necessárias.

Bruto, primitivo, ingênuo, o  bricoleur se arranja dos materiais que estão por ali, restos de construções anteriores, produtos de destruições prévias, é do guardado que se faz uso, conservado justo porque sempre poderia servir.

A bricolagem é conceito-ofício Levi-Straussiano, e não é se não esse meu exercício de contar fragmentos, contagem que digo, relato, montagem. Muitas vezes paro o texto, quem o verá escrito, não lhe traça a história, a procura pelo pedaço que lhe serve, que ponho e retiro, por união de sentido, sentido do fragmento que agora se redefine noutro sentido.

O que me traz o caleidoscópio – outro fragmento Levi-Straussiano – está guardado em algum lugar, seu livro é claro, o guardei, é para por aqui, dar-lhe um novo sentido, não o fragmento do texto, não mais caco da garrafa, que tinha o líquido que brindamos, mas produto da quebra e da destruição da mesma, restos indefiníveis do continente objeto, remonta momento do encontro, depois separação, reencontro prometido que nunca aconteceu, desenha-se agora em mágico-míticos desenhos engendrados por encontros contingentes de fatos – os giros que com o brinquedo faço – restringidos pela necessidade das regras que permitem construir um caleidoscópio, como o caleidoscópio que é.

 

Nada

26/11/2016

– O que você está pensando?
– Nada.
O curto diálogo interrompeu alguns minutos de silêncio. Por gosto de interromper, silêncio incômodo que podia durar ainda mais alguns momentos.
Muitos anos depois e mesmo tendo passado por isso diferentes vezes, não havia apreendido a importância do diálogo: a não negativa do nada, a admissão do nada.
Nada, recurso metafísico – ir além. Há o que é, admitindo-o pelo ente que é, não seria nada mais que é, ou nada além que é. Nada o que poderia ser antes do começo do que é, depois do fim. Existe, então, o nada, este que nomeio, penso.
Há muito deixamos de pensar nada, o pensamento racional, o cogito, pensamento que tem objeto, limita-se ao objeto pensado, nada mais, nada além.
O nada é a razão da angústia; a vastidão do que está além do que o ser que é, reduz o que é a um quase nada, ponto de breve existência em meio ao grande nada. Corrijo: não há o grande nada, o nada, não sendo, não tem dimensão. O nada está para o mais ou para o menos, há o nada que permeia a substância, micronada. A angústia, meio de revelar o nada; só se pode divisá-lo na angústia. Ou ao cair na modorra. Os olhos cansados sobre o livro, reconfiguram-se as palavras, desenham idéias numa linguagem desconhecida, aproxima-se a compreensão do nada antes de esvair-se a consciência.
O nada pode ser palco da criação, possível que é, pelo pensamento, povoá-lo de seres. O nada torna-se a impossibilidade do nada, povoado de objetos e seres que estão além.
Por outro lado, a ciência – ao definir seus objetos de estudo e planos de investigação – faz referência ao que é, nada mais. O nada fica além do alcance da ciência.
O mito ou a ciência, por meios distintos, divisam nada do nada, configuram-se ambos caminhos seguros para a evitação do nada.
Penso nada. Nonada.

Meu pai faz 90 anos

17/02/2015

Nos 80 anos de meu pai, fizemos uma festa no sítio. Há um momento em que houve discursos. Geralmente participo com ouvidos, não sou dado ao palavrório. Ali o meu irmão mais velho prepara-se para falar, e me chama: “Gil! Gil!”. Compareci, ele me disse que devia falar primeiro. Não estava preparado para fazer um discurso. Eu sou o segundo filho, de uma fila de seis, ou meia-dúzia. Mas tive de ser o primeiro a falar.

Sem preparo, de improviso, disse que pude ter, com o pai que tenho, o exercício dessa liberdade reflexiva. Não apenas por ele, mas pela família que tive. Pai, mãe e irmãos.

Mas há algo maior em ter um pai octogenário, quase nonagenário, já tendo eu mais de quarenta. É ele estar ainda ali presente, ainda para o que der e o que vier. Isso me faz sentir um menino. Não cresci com a coragem de fazer o errado, mas estando ele ainda vivo, é certo que caso um dia me descuide, ele vai estar ali para severamente me fazer sentir repreendido, ainda que não me repreenda, e a seu modo encaminhar as coisas para resolver ou minimizar as consequências desse malfeito.

Há um imenso simbolismo na coisa de ser pai, de representar figura paterna, coisas que a pós-modernidade fez ruir como autoridade dada. Eu sou um pai de filhos nessa pós-modernidade, de um lado, e filho de um pai da antiga de outro. E por assim dizer, travei e travo comigo, o diálogo de dois tempos distintos. Sem negar um ou outro, sou uma síntese, certamente mal acabada, desses diferentes mundos que permito ou faço existir. De um lado, meus filhos, de outro, seus avôs octogenários, me fazendo adulto e menino, trazem para reflexão o mundo que se faz a seus tempos. É esse trânsito entre mundos gerações o que talvez mais me caracterize. Talvez por isso, seja tão difícil me compreender ou me fazer compreendido. É guardar um vinil antigo, velha coleção de valsas vienenses, ou Arthur Rubinstein interpretando concertos de Beethoven. São presentes antigos, de meu pai a minha mãe, ainda ali guardado o som, silêncio que tecnologia moderna, com leitores lasers ou codecs digitais não nos fazem escutar. Eu ainda tenho a velha radiola. E gosto de brincar com linguagens, o registro analógico, do velho relevo de vinil que a range a agulha de diamante, vai digital por fibra óptica, registro em disco rígido, toca como mp3, codec, tecnologia moderna que decifra e vira som. Agrada meu ouvido analógico, o velho som de vinil, com cliques e assobios, marcas de tempo e uso. Não podemos é perder a conexão.

O mundo, o sistema que opera o mundo, impõe-nos uma obsolescência, nossa linguagem, ligantes e receptores mudam, nem sempre há adaptadores, o que transporte o existente antigo ao novo. Um velho rádio de válvulas, quem se lembra disso, havia um de meu avô, foi meu pai que trouxe dos EUA, década de 50, já com FM, deve ser dos únicos que se tem por aqui. Ainda funciona. Foi o Renato quem consertou. Uma válvula queimada, sem substituição no mercado, um desenho eletrônico de transistores-capacitores, liga, som muito bom.

É esse trafegar de mundos. Vir do pai que venho, também mãe. Poderia dizer de um não falar do outro? Tão diferentes. Como isso deu certo. Não deu certo. Quem desistiria. Não desistiram. O destino, essa estranha insistência nossa. Teimar com ele. Fazer as coisas de nosso jeito. No fim das contas, teimar que estamos certos, e quantas vezes, por teimosia. E como a gente podia ser tão teimoso. Lá em casa todo mundo teima. Resiste. Conserva. Em casa onde todo muito teima, todo mundo muito seguro, firme, contempla o mundo da sua perspectiva e exercício metafísico é ter a perspectiva do outro, transferir-se ao seu ponto de vista. Não concordar, não dar o braço a torcer. Acolher o pensamento, mesmo o oposto, deixar existir, pelo legítimo que o outro representa. É o aceite.

Então, lá em casa, o amor é essa prática de liberdade de pensamento. Deixo que pensem, que se expressem livremente em seu pensamento, meu pensamento quase sempre o contrário, o outro lado, por exercício de teimosia. Há outro modo de pensar, eu mesmo penso diferente. De mim mesmo. Liberdade de pensar e repensar, exercício de liberdade reflexiva. O difícil é manter o pensamento no trajeto. Muitos encontros de pensamentos.

Falei dos contrários, o muito diferente de meu pai e de minha mãe. Ela quase sempre o caminho, conexão de chegar a ele, mas ele ali. Presença de pai. Era outro tempo. Então coexisti nos contrários, entendi que melhor o movimento, o equilíbrio dinâmico. O bom de estar vivo é movimentar, cinético da energia que movimenta, conserva movimento, mantém-nos vivos na existência. O bom de estar vivo, em movimento, é também o encontro. Um pião rodando parado, a imagem traz o meu tio Afrânio, de rara habilidade, dizia meu pai, fazia os piões, que parado ficavam, rodando, equilibrado movimento em ponta fina, rotação. Um de meus filhos trouxe da escola o brinquedo, pião de madeira, no quintal de casa, o vovô Roberto de primeira, pôs o pião em parado movimento. Do seu tempo de menino, conservou-se nesse fazer.

Mas estou falando de encontro, não de conservação, é do encontro, o de meu e pai e minha mãe, muito diferentes, conjecturo que não são raízes, do encontro me fiz broto. E também brotos são meus irmãos, e tivemos nossos encontros, e brotos. Família então muitos encontros e brotos, raízes se enterram, brotos saem ao mundo, outros encontros, outros brotos. Rizoma. De novo este bom de estar vivo.

Volto um pouco para tomar outra meada, barbante que se enrola em pião, surpreendeu-me vê-lo ainda saber rodar pião, a conservação. Meu pai um grande conservador, grande sabedoria guardada, conservada. Eu, só por teimosia, quis ser um grande transformador. Exercício de pensar contrário. Esses contrários que eu reaproximo, que conecto. Aprendi: em grandes transformações, um passo importante, o primeiro a dar, é definir o que queremos conservar. Há grandes tesouros que trago, conservados de tantas tormentas, ele estava ali, a deixar claro o que realmente importa.

Deixo publicado esse post, já há tantos anos rascunho. Era para ser discurso, um aniversário de 90 anos. Não de improviso, discurso lido. Já deixo escrito. Até lá um pós escrito, quem sabe, algumas edições certamente. Faz 88 hoje. Oitos que deitados são infinitos. É do discurso dele ontem, dia da comemoração.