Li com inquietação o artigo de Wludarski et al. (Wludarski SC, Lopes LF, Berto E Silva TR, Carvalho FM, Weiss LM, Bacchi CE. HER2 testing in breast carcinoma: very low concordance rate between reference and local laboratories in Brazil. Appl Immunohistochem Mol Morphol. 2011 Mar;19(2):112-8)
Em princípio, entendi que não devia ficar sem um comentário, mas não me senti confortável de me manifestar à época, e é com imenso desconforto que o faço agora.
Coloquei-me no lugar dos autores, e tentei imaginar como conseguiram produzir tal peça, sem que qualquer desconforto transparecesse.
Coloquei-me no lugar dos referees, e tentei imaginar como deixaram passar esse artigo, na forma como está, sem imaginar o desconforto que sentiriam pessoas honestas trabalhando em seus pequenos laboratórios, de maneira artesal, mas meticulosa, e todas metidas dentro do saco comum de laboratórios locais discordantes da referência auto-pronunciada.
Coloquei-me no lugar dos editores, e que desconforto não sentiriam, fosse eu em lugar deles, ao ver que a anteriormente promissora Applied, serviu de veículo para a divulgação do artigo, na forma como está.
Com desconforto apercebi que pessoas de autores e editores se confundem.
Procurei uma revelação de eventuais conflitos de interesse, imaginando que tamanha destreza em desmoralizar de maneira geral os laboratórios locais, pudesse estar relacionada ao exercício de marketing e ganho de mercados, uma vez o laboratório da referência é laboratório privado, com interesses comerciais. Decepcionei-me com a revista: não encontrei qualquer menção a eventuais conflitos.
Para superar meu próprio desconforto em manifestar-me, visto que ninguém se manifestou ou comentou, preferi aguardar alguns acontecimentos. Saíram, por esses dias, os resultados da avaliação de proficiência do CAP, em relação ao ensaio do HER-2, que viemos conduzindo no nosso serviço, já pelo quarto ano consecutivo.
Os nossos resultados sempre foram “good” ou eventualmente “acceptable”. Nossos resultados 3+ sempre se correlacionaram com amplificação pelo FISH, no laboratório de referencia, exceto num caso, que a amplificação foi de 2,3 se me lembro bem de cabeça: os resultados da imunohistoquímica também foram negativos no laboratório de referencia do CAP. Do mesmo modo, nossos resultados negativos (0 ou 1+) sempre correlacionaram com FISH não amplificado no laboratório de referencia do CAP.
Se os resultados da avaliação de proficiência não me conferem autoridade para comentar o artigo de Wludarski e cols, pelo menos amenizam meu desconforto, e me permitem levantar alguns pontos:
– Há evidente vício de seleção da amostra estudada: a impressionante cifra de 67,6% de casos duvidosos, sugere que os casos duvidosos estavam sendo encaminhados ao laboratório da referência para realizar o FISH, situação que se aproveitou para repetir a imunohistoquímica. Por conter parcela maior de casos duvidosos, é de se esperar maior variabilidade dos resultados. Diga-se, na avaliação dos laboratórios pelo CAP, não me recordo, nestes quatro anos que participo, de um resultado 2+ consensual (em que pelo menos 80% dos participantes concordassem).
– A distinção dos resultados negativos (0 e 1+) não faz qualquer sentido, contribuindo para aumentar numericamente a discordância. Se forem considerados resultados 0/1+ em conjunto, a concordância sobe dos 171/500=34,2%, para 196/500=39,2%. Parece irrelevante, mas é mais honesto.
– A imunohistoquímica (mesmo a realizada em laboratório de referência) não é o padrão ouro, para a avaliação do HER-2. O padrão ouro ainda é o FISH. Comparar as imunos com as imunos, não é suficiente, mesmo com a concordância dos resultados 0, 1+ e 3+ com FISH não-amplificado e amplificado, respectivamente. Os casos 2+ são equívocos, duvidosos, tendem a variabilidade, expressam a limitação do método. Os casos 2+ chegaram a 37% (!) dos 1115 casos avaliados pela “referência” na validação da imuno em contraposição ao FISH. Essa margem de duvidosos e exclusão das polissomias do 17, podem mesmo ter contribuído para o índice de concordância de 98,4%. Ainda assim, 98,4% não é 100%. São 11 casos em que não há concordância de resultados: 5 pacientes candidatas a tratamento, correndo o risco de efeitos colaterais, sem qualquer efeito da medicação, e 6 em que o tratamento deixaria de ser indicado, pelo resultado discordante. Os resultados do trabalho indicam que entre os 500 casos “de fora” estudados, 27 pacientes estariam candidatas ao tratamento com uma medicação sem efeito sobre a doença, considerando o padrão ouro empregado pelos autores. Aí pode estar realmente um problema: pode haver uma tendência dos laboratórios em geral de superestimar a expressão do HER-2. Por outro lado, contudo, apenas 4 pacientes deixariam de receber o tratamento, mesmo com a possibilidade de resposta, se for considerado o padrão ouro empregado no trabalho. Na discussão, os autores falam que “This finding shows that some patients may potentially not be appropriately treated with trastuzumab”, esquecem de olhar para si próprios, e ver que 5 de 337 de seus próprios resultados foram falso-negativos (a “diferença” na frequência dos falso-negativos num e noutro caso deu um valor p=0,5, não significativo, portanto). De qualquer modo, são comparações feitas com diferentes padrões-ouro, em amostras com processos de seleção totalmente distintos, que é difícil imaginar a comparação.
Indago-me se todo o desconforto que sinto ao me manifestar sobre o assunto não são alvitre para que me abstivesse de fazê-lo.
Vejo-me impelido a fazê-lo, pelo exercício da liberdade, a busca epistemológica de uma verdade. Um processo de autoconsciência requer uma luta, aceitar o desconforto. Em outras palavras, entender a liberdade só é possível por meio de atos corajosos de resistência, requeridos para a autorreflexão. “Eles têm de se engajar nessa luta, pois eles têm de elevar sua certeza de ser para eles próprios à verdade … E é apenas por meio de apostar a própria vida que se ganha a liberdade… O indivíduo que não arriscou sua vida pode bem ser reconhecido como pessoa, mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma autoconsciência independente (Hegel)”
O desconforto que ora enfrento surge não do embate de idéias, que realizo com galhardia, mas da responsabilidade que nos damos, ao oferecer um resultado a um paciente, sem que nada, se não minha própria consciência ao fazê-lo, me assegure de que vou estar certo. Não há controle interno ou externo, proficiência interna ou externa que nos serene, que nos assegure a certeza, a aproximação real da verdade. É desconfortável constatar que há aqueles que tratam essa aflição existencial autêntica com desprezo, estabelecendo a si próprios como padrão-ouro, conclamando a si a referencia da verdade, e reduzindo a verdade a apenas isso, a uma correspondência entre testes, que se validam como verdadeiros, mesmo contaminados por resultados falsos positivos ou negativos. Essas inverdades que surgem dos resultados e que reconhecemos nas taxas impessoais das validações que fazemos, mesmo embora poucas, por vezes elas nos surpreendem. Aí, no caso real, não é mais a taxa impessoal. O caso é pessoa, a quem tratamos com a ciência limitada que dispomos, é no caso, na pessoa, que convivemos com as nossas limitações.
O real não se revela por padrões-ouro, “nunca é o que se poderia achar, mas é sempre o que se deveria ter pensado”.
Há falsos resultados, positivos ou negativos, que se revelam somente no porvir, no desfecho do caso, na resposta ou não ao tratamento: “O pensamento empírico torna-se claro depois quando o conjunto de argumentos fica estabelecido. Ao retomar um passado cheio de erros, encontra-se a verdade num autêntico arrependimento intelectual” (Bachelard).
Esbarrar nas nossas limitações, no erro, expõe não apenas nossos próprios limites, mas os da ciência (da arte) que operamos. As técnicas em medicina surgem, são validadas na prática, na própria prática que as valida: ocupam parcialmente as enormes lacunas de conhecimento, que precisamos preencher, para responder ao menos parcialmente às nossas questões, à angústia dos pacientes por alguma conduta, que lhes rendam se não uma resposta, alguma esperança.
A imunohistoquímica surge como prática médica neste contexto. Acertos e erros são retrospectivamente avaliados, no curso em que pacientes são acertadamente ou não conduzidos. Na própria história da avaliação do HER-2, assisti a um curso ministrado pelo Dr. C. E. Bacchi, talvez no congresso de Brasília, em 1997, em que mencionava sua própria experiência com HER-2 após recuperação antigênica. Nas palavras dele, tamanha era a sensibilidade técnica, que era possível detectar a expressão da proteína resultante da expressão de cópias não amplificadas do gene, presentes no genoma de toda célula. O resultado era a expressão imunohistoquímica do HER-2 nas células não neoplásicas. A tendência hoje é interpretar a expressão no epitélio normal como erro de padronização, muito embora alguns recomendassem “ajustar” a reação no epitélio neoplásico, por aquela no epitélio normal (Cf. Khanafshar & Weidner – The Breast. In: Taylor & Cote Immunomicroscopy, 3rd ed.)
Operamos ajustes a todo tempo: há algum tempo, rotulávamos 2+ como positivo, hoje é duvidoso. Para aumentar a especificidade, ampliou-se a janela (de 10% para 30% das células) que comportava os exames duvidosos (2+) reduzindo-se a faixa dos casos positivos (3+). Há uma busca progressiva por melhora, mas as mudanças não nos atingem a todos ao mesmo tempo. Nesta busca, há ações que podem ser feitas, como a participação em avaliações de proficiência, e mais do que isso, a disponibilização de tais avaliações entre nós. Os dados gerados no laboratório da referência deveriam ter sido disponibilizados aos laboratórios locais, como ferramenta para eventual mudança, para acompanhar mais de perto um processo de melhoria contínua, sem atraso ou grande intervalo de tempo, entre o que se preconiza e o que se realiza.
A publicação do artigo, na minha interpretação, não indica compromisso com essa busca por melhora. Muito raramente recebo algum laudo do laboratório da referencia, de um caso que tenha sido por nós estudado. Até por coincidência, nestes dias recebi um caso em que discordamos na avaliação do HER-2. Tratava-se de paciente com carcinoma mamário ductal infiltrante, pouco diferenciado, grau 3. No meu estudo, resultado negativo, escore 0. Lá, resultado duvidoso, escore 2+. FISH não amplificado. A discordância com a imuno demonstra que não estou certo em relação a esse padrão-dourado. A concordância com a FISH demonstra que agora não estou errado. Estar certo ou errado em relação ao real, contudo, nem sempre é fácil ou possível de se definir de antemão.